CENTRO DE ARTE E ESTUDOS BRITÂNICOS DE YALE, LOUIS KAHN
Autor do Texto e Imagens: Edson Mahfuz
Autor do Modelo: Matheus Benincá
Fonte: https://edsonmahfuz.wixsite.com/arquiex
Louis Kahn é um arquiteto conhecido e admirado por muitos por várias razões mas raras vezes se menciona uma das suas principais qualidades: a de haver sintetizado modernismo e arquitetura histórica numa produção única que dificilmente pode ser classificada em algum dos estilos históricos. Se por um lado Frank Lloyd Wright foi algumas vezes elogiado –maldosamente– como o melhor arquiteto americano do século dezenove, Mies van der Rohe sempre foi visto como um modernista e Le Corbusier como um modernista com tendências arcaizantes no final da sua carreira, Kahn é inclassificável[1]: em todos os seus projetos há elementos modernistas e estratégias adaptadas da história pré-moderna, como veremos a seguir.
O Centro de Arte e Estudos Britânicos de Yale é um dos últimos trabalhos de Kahn[2], concluído três anos após a sua morte, e também um dos mais importantes da sua obra, pelas lições projetuais que encerra. O Mellon Center, como era chamado inicialmente, foi construído no campus da Universidade Yale, em New Haven, no estado norte-americano de Connecticut, um campus de características bastante urbanas, inserido e mesclado com o tecido dessa pequena cidade do nordeste dos Estados Unidos. Sua localização específica é a esquina das ruas Chapel e High, bem no coração do campus, em terreno que mede aproximadamente 75m sobre Chapel St. e 58m sobre High Street.
Programa
O edifício abriga um centro para o entendimento da cultura anglo-americana e contém a mais importante coleção de arte britânica fora do Reino Unido: retratos, paisagens rurais e marinhas, áreas urbanas, vida cotidiana, etc. Os fundos para o Centro foram doados por Paul Mellon, milionário americano que também doou a maior parte das coleções.
O programa pedia um “edifício humanista”, bem relacionado com a cidade de New Haven e com o campus da Universidade Yale. Esse edifício não devia ser monumental, composto por espaços grandes e pequenos, em escala com a coleção. Além disso, o cliente pedia que tivesse luz natural abundante, que seus espaços fossem flexíveis e que fosse “belo em vez de sublime ou pitoresco,” oposição que nos leva a entender que a universidade queria um edifício distinto, imponente e discreto, evitando qualquer extravagância e experimentação formal.[3]
No que se refere às atividades específicas do Centro, além de salas de exposição, depósitos e oficinas para manutenção das obras, o edifício abriga bibliotecas de referência e livros raros, auditório, salas para seminários e para estudo. Além disso, o programa incluía espaços comerciais os quais, situados na planta baixa, ajudam em muito na manutenção do caráter urbano do campus de Yale.
Construção Formal
O projeto do Centro de Arte e Estudos Britânicos de Yale se baseia em duas estratégias iniciais importantes: a adoção da composição subtrativa a partir de um prisma de base retangular medindo aproximadamente 62x38m[4] e a definição de uma estrutura portante que também define os espaços e é um dos elementos expressivos mais importantes do edifício. A primeira estratégia não era nenhuma novidade na obra de Kahn: tanto de modo isolado (Exeter) como em combinação com outros similares (Bryn Mawr, Dacca) os volumes elementares sempre foram parte importante do repertório presente na sua obra madura. Já a presença tão clara e dominante da estrutura resistente é incomum: antes de Yale só havia aparecido no Museu Kimbell, cujo projeto iniciou em 1967.
Um possível precedente para o uso expressivo de uma grelha estrutural tridimensional homogênea seria a Casa del Fascio, de Giuseppe Terragni, seguramente conhecida por Louis Kahn, conexão que poderíamos descartar se não fosse para sublinhar o fato de que a arquitetura na maioria dos casos sai da própria arquitetura, pelo menos no âmbito de produções que podem ser sistematizadas e transmitidas como conhecimento, coisa que não se aplica aos projetos fluidos e paramétricos atuais.
O volume prismático do edifício que conhecemos é materializado pela grelha tridimensional homogênea que constitui ao mesmo tempo sua estrutura portante e espacial. Cada módulo estrutural/espacial mede 6,2×6,2m de lado –entre eixos– por 3,5m de altura livre entre piso e laje. As vigas de borda variam de tamanho: 85cm entre o térreo e o segundo pavimento e 35cm as demais. Na cobertura há vigas em V com 1,4m de altura que servem também como laterais das claraboias e acomodam dutos de ar condicionado. A grelha contém 60 módulos por pavimento (6×10), totalizando 240 no volume todo.
Ainda na escala das grandes decisões que definem o projeto, Kahn realizou três subtrações importantes: 4 módulos na esquina, onde colocou o acesso principal, mais 4 módulos adjacentes ao acesso, indo do piso até a cobertura –o que configura a subtração de 16 módulos– e mais 6 sobre o auditório, já no segundo pavimento, também indo até a cobertura –18 módulos subtraídos aqui.
Grelha tridimensional + Prisma regular – Subtrações: assim ficou definido o edifício na sua essência. Todas as atividades do Centro se organizam em torno de dois átrios iluminados zenitalmente, os quais são os focos da atividade e da circulação nos pavimentos principais do edifício. O primeiro átrio está conectado ao generoso espaço de acesso que atua como transição entre a rua e o interior. Ao passar da porta de entrada e ingressar no primeiro átrio já se pode avistar as coleções. O segundo átrio, situado sobre o auditório, diferentemente do primeiro, funciona como sala de exposição para pinturas de grandes dimensões.
Como bem apontou Ignacio Paricio[5] a relação entre os suportes verticais da estrutura independente modernista e os elementos de vedação/compartimentação pode se dar de três modos: total independência entre as partes (como é o caso do Millowners Building, de Le Corbusier, em Ahmedabad); deformação da grelha e sua absorção na estrutura espacial (fato comum na arquitetura feita por construtores e engenheiros); subordinação das paredes à ordem estrutural. O projeto de Kahn segue a terceira alternativa; as fachadas e as divisões interiores principais seguem rigorosamente as linhas da grelha. Até mesmo as poucas exceções –os quadrados girados que abrigam instalações nos três primeiros pavimentos– orientam o seu tamanho e giro pelas linhas da grelha, integrando-se perfeitamente a ela.
A grelha tridimensional possibilita a flexibilidade exigida pelos clientes e a realização do tipo de espaço preferido por Kahn, que entendia a planta de um edifício como uma “associação de recintos” em vez do espaço fluido de muitos dos seus contemporâneos. Os recintos do Centro de Arte e Estudos Britânicos de Yale são sempre quadrados ou retangulares, organizados em sequências ou percursos relacionados aos dois átrios, que lhes proporcionam orientação e iluminação.
Neste projeto a grelha tridimensional é mais do que estrutura resistente. Seu papel como referência visual estabelece uma pauta que permite que o visitante entenda sua distribuição espacial e o modo como são organizadas as fachadas.
É interessante como Kahn modifica a grelha genérica, tornando-a um elemento específico deste projeto por meio de uma série de transformações, uma delas relacionada à arquitetura pré-moderna, que é a articulação do volume em termos de base/corpo/coroamento. Assim, na base do edifício pilares alternados são retirados, resultando em vãos duplos na parte comercial. Além disso, o plano das esquadrias é recuado até a face interior dos pilares, criando mais um fator de diferenciação da planta térrea. No corpo do edifício, nos três lugares onde há espaços de pé-direito duplo na biblioteca as lajes são suprimidas na fachada, sendo a continuidade dos painéis uma sutil referência à espacialidade interna. Na parte superior, ao invés de deixar a grelha como se pudesse continuar infinitamente, o edifício é terminado por uma grelha horizontal de claraboias cuja espessura, perceptível de qualquer ponto de vista, é a das vigas em V que as constituem.
Uma lição transcendental desta obra é o tratamento da fachada como sistema. Em um edifício desse porte, e que abriga várias atividades diferentes, o atendimento mais ou menos literal às necessidades específicas de iluminação de cada uma poderia facilmente fazer das fachadas uma coleção desconexa de aberturas de vários tamanhos. Kahn lidou com isso criando um sistema em que cada painel de fachada –cujo tamanho é o de um módulo estrutural– é divido em 6 partes (2 colunas e 3 linhas). A partir do painel básico é possível introduzir aberturas horizontais e verticais de várias dimensões e em posições diferentes, sem que nunca a distribuição de janelas pareça aleatória.
Outro aspecto interessante da solução de fachada é que, embora a maioria dos seus elementos esteja no mesmo plano, vários detalhes concorrem para evitar a aparência bidimensional de muitas fachadas contemporâneas: além da clara distinção entre grelha de concreto armado e seu preenchimento com painéis de aço, há reentrâncias nos painéis no ponto de contato com os pilares e pingadeiras superdimensionadas na base dos painéis o que, além de resolver um problema técnico, cria na fachada linhas de sombra que fazem lembrar o chiaroscuro da arquitetura tradicional.
No início deste texto mencionei as lições que se pode extrair deste projeto. Além de um edifício o que Kahn criou em Yale foi um sistema de projeto capaz de gerar edifícios urbanos silenciosos e que, aplicado situações diferentes, pode gerar uma infinidade de edifícios também diferentes.[6] Isso me parece uma possível definição de um clássico: um objeto que, além da sua qualidade intrínseca, pode ser o ponto de partida da criação de muitos outros.
Ao examinar este edifício mais uma vez me recordo das críticas candentes à arquitetura moderna que invariavelmente acabavam mencionando supostas indiferenças em relação ao entorno e à história. O edifício projetado por Kahn para Yale mostra como se pode estabelecer uma relação positiva com o contexto urbano –valorização da esquina, continuidade de altura e alinhamento, textura, etc– e com os precedentes sem cair no pastiche e na paródia. Isso pode parecer um assunto ultrapassado, depois de Collage City, do contextualismo e outros apelos em favor da cidade. No entanto, alertar que a cidade é o habitat da arquitetura e que os edifícios têm obrigação de trabalhar a seu favor é novamente necessário nestes tempos de “arquitetura fluida”, parametricismo e outras ilusões do mesmo calibre.